Há um gesto solene na psicanálise: deitar-se. O corpo se inclina, repousa, se oferece à palavra. No silêncio do analista, supõe-se escuta. No divã, imagina-se liberdade. Mas para quem? De que liberdade falamos quando o corpo que repousa é negro, atravessado por séculos de violência, expropriação, colonização do ser e da fala?
O divã — símbolo central da clínica psicanalítica tradicional — carrega uma promessa: a de um espaço neutro, livre de julgamento, onde o inconsciente pode emergir em sua pureza. Mas essa promessa não vale igualmente para todos. O analisando negro, ao se deitar no divã, pode não apenas acessar seus conflitos internos, mas também reviver, de modo sutil ou gritante, as marcas de uma neutralidade branca que o exclui, que o vigia, que o cala.
Frantz Fanon já nos alertava que o sujeito negro, ao entrar na cena social, é imediatamente capturado pelo olhar do outro — um olhar colonial, racista, patologizante. E o setting analítico, por mais que se pretenda neutro, está inevitavelmente inserido nessa cena. O divã, então, não é apenas um móvel, mas um território simbólico. Nele se jogam as tensões entre escuta e silêncio, acolhimento e apagamento, cura e colonização.
Na clínica tradicional, o silêncio do analista é um recurso técnico. Mas para o analisando negro, esse silêncio pode ser a repetição de um outro silêncio — o imposto ao longo da história. O silêncio de quem, por muito tempo, não teve voz. Ou, pior, teve voz, mas não foi ouvido. Teve dor, mas esta foi lida como exagero, vitimismo, paranoia. Teve ancestralidade, mas foi chamada de superstição.
Deitar-se no divã pode ser, para o sujeito negro, uma repetição do gesto de entrega forçada. Deitar-se como se deitavam os corpos nos porões dos navios, sem escolha, sem olhar, sem controle. Pode parecer exagero — mas o inconsciente sabe dos pesos simbólicos. Ele não ignora o chão onde se deita. Não há psique descolada da história.
Mas há caminhos. Há brechas. Há resistência.
A clínica amefricana tem nos mostrado que o divã pode ser ressignificado. Pode tornar-se local de saber, esteio de ancestralidade, lugar onde a palavra volta a pulsar não como confissão, mas como encantamento. Para isso, é preciso que a escuta se torne radical: uma escuta com o corpo, com o axé, com a memória ancestral. Que o setting acolha o tambor, a dança, a lágrima que vem não apenas da dor pessoal, mas do sofrimento coletivo.
Talvez o divã não precise ser abandonado — mas reinventado. Não como altar do saber europeu, mas como território de travessia. Que ele possa ser coberto com palha, tecidos africanos, que receba os pés descalços da analisanda preta, que não exija neutralidade, mas presença. Que o analista se disponha não apenas a ouvir, mas a se deixar afetar — a ser corpo também, e não apenas intérprete.
O divã, enfim, precisa deixar de ser monumento e tornar-se encruzilhada. Espaço sagrado onde as vozes silenciadas possam finalmente ecoar. Onde o corpo negro possa se deitar — não para se render, mas para se reerguer em palavra, em desejo, em história viva.