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Juliano Moreira – Abordagem Antirracista na Saúde Mental

Uma abordagem antirracista na saúde mental exige a reformulação de políticas públicas e práticas institucionais. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciada por Juliano Moreira e Virginia Bicudo, representa um marco importante nesse sentido, mas ainda há muito a ser feito.

Juliano Moreira, um dos primeiros psiquiatras negros do Brasil, foi pioneiro na luta contra o racismo científico e na humanização dos tratamentos psiquiátricos. Ele desafiou teorias que associavam raça à degeneração mental e defendeu uma abordagem mais inclusiva e baseada em evidências. Sua contribuição para a saúde mental brasileira foi fundamental, mas muitas de suas ideias ainda não foram plenamente implementadas.

 

Juliano Moreira: Biografia e Legado

Juliano Moreira (1873-1933) foi um médico psiquiatra, professor e pesquisador brasileiro, reconhecido como uma das figuras mais importantes no campo da saúde mental no Brasil. Filho de uma mulher negra, Juliano nasceu em Salvador, na Bahia, e destacou-se como um dos primeiros médicos negros do país em uma época marcada pelo racismo institucional e pela exclusão da população negra das esferas de prestígio social e intelectual.

Aos 13 anos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, formando-se aos 18 anos, e posteriormente especializou-se em psiquiatria. Durante sua trajetória, foi pioneiro ao combater as teorias racistas de sua época, que associavam a saúde mental e doenças psiquiátricas a fatores biológicos e hereditários baseados na ideia de inferioridade racial.

Estudos sobre a Saúde Mental da População Negra

Juliano Moreira desafiou a ciência racista predominante em sua época, que utilizava argumentos pseudo-científicos para justificar a inferiorização da população negra. Ele combateu as teorias de degeneração racial, muito difundidas no final do século XIX e início do século XX, que atribuíam o desenvolvimento de doenças mentais e outras condições à herança genética de indivíduos negros ou miscigenados.

Em seus estudos, Moreira destacou que a saúde mental estava profundamente influenciada por fatores sociais e ambientais, como pobreza, exclusão e violência, e não pela raça. Esse posicionamento foi fundamental para deslegitimar as bases pseudocientíficas do racismo eugenista que prevalecia tanto no Brasil quanto na Europa.

“Não se pode compreender a mente humana sem considerar as condições culturais e sociais em que o indivíduo está inserido.” (Moreira, início do século XX)

Contribuição para a Luta Antimanicomial

Juliano Moreira foi um dos pioneiros na humanização do tratamento psiquiátrico no Brasil, sendo amplamente considerado o “pai da psiquiatria moderna brasileira”. Ele rejeitou o modelo manicomial tradicional, que tratava os pacientes com doenças mentais de maneira desumana, segregando-os e estigmatizando-os.

Ao assumir a direção do Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, em 1 903, Juliano implementou reformas importantes, incluindo:

  • Desativação de métodos violentos:
    Ele proibiu o uso de correntes e outros instrumentos de contenção física, comuns na época.
  • Introdução de atividades terapêuticas: Substituiu práticas punitivas por abordagens que incentivavam a expressão artística, o trabalho e a convivência social como formas de tratamento.
  • Visão interdisciplinar:
    Defendeu que o cuidado em saúde mental deveria envolver múltiplos fatores, como a educação, cultura e atenção ao bem-estar social dos pacientes.

Essas ações anteciparam os princípios que mais tarde se consolidariam na luta antimanicomial brasileira, especialmente nas décadas de 1970 e 1980.

Estudos sobre Raça, Saúde Mental e Eugenia

Juliano Moreira posicionou-se contra a eugenia, um movimento pseudocientífico que pregava a “melhoria” da raça humana por meio do controle da reprodução. No Brasil, a eugenia ganhou força como justificativa para políticas de exclusão e inferiorização da população negra e indígena.

Ao refutar a associação entre raça e degeneração mental, Moreira sustentou que os distúrbios psiquiátricos tinham causas multifatoriais, envolvendo aspectos culturais, ambientais e sociais. Ele argumentava que o racismo e a exclusão social eram fatores preponderantes para a vulnerabilidade mental da população negra.

Sua visão foi crucial para desmantelar a visão racista da medicina e psiquiatria da época, que utilizava a ciência para perpetuar desigualdades.

Contribuições Acadêmicas e Científicas

Juliano Moreira foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros a adotar métodos científicos modernos, alinhando-se às práticas europeias da época. Ele realizou estudos avançados sobre doenças psiquiátricas, como a demência precoce (posteriormente conhecida como esquizofrenia), sífilis terciária e outras condições neurológicas.

Além disso, contribuiu para a disseminação de uma visão mais humanista e social da psiquiatria, publicando artigos que enfatizavam a necessidade de compreender o paciente em sua totalidade, considerando fatores biopsicossociais.

Legado e Reconhecimento

Embora tenha enfrentado preconceitos raciais ao longo de sua carreira, Juliano Moreira recebeu diversos reconhecimentos, tanto no Brasil quanto internacionalmente. Sua obra influenciou gerações de psiquiatras e estudiosos das ciências sociais, especialmente aqueles comprometidos com a luta contra o racismo e a desumanização na saúde mental.

Em homenagem ao seu trabalho, o principal hospital psiquiátrico da Bahia leva seu nome: o Instituto Juliano Moreira.

“A luta de Juliano Moreira contra o racismo e a institucionalização do sofrimento mental continua sendo uma inspiração para os movimentos antirracistas e antimanicomiais até hoje.”

Juliano Moreira e os Movimentos Contemporâneos de Saúde Mental e Antirracismo

A trajetória e o legado de Juliano Moreira não apenas marcaram a história da psiquiatria brasileira, mas também servem de base para debates e ações contemporâneas nos campos da saúde mental, da luta antirracista e da luta antimanicomial. Suas contribuições permanecem atuais, especialmente diante das desigualdades persistentes na atenção à saúde mental da população negra e periférica.

Juliano Moreira e a Saúde Mental da População Negra Hoje

O Brasil contemporâneo ainda enfrenta o impacto estrutural do racismo na saúde mental. Estudos recentes mostram que pessoas negras estão mais expostas a fatores de risco para transtornos mentais, como pobreza, violência, exclusão social e desigualdades de acesso ao sistema de saúde. Apesar disso, a maioria das políticas públicas ainda negligencia a interseccionalidade entre raça e saúde mental.

Juliano Moreira, ao combater teorias de inferioridade racial e destacar os fatores sociais na saúde mental, foi pioneiro em propor uma abordagem que reconhecia a complexidade das condições psicossociais dos pacientes. Seu trabalho se conecta diretamente à luta por políticas públicas que integrem uma perspectiva racializada e interseccional na atenção à saúde mental.

No Brasil, iniciativas como as políticas de equidade racial no SUS (Sistema Único de Saúde) buscam corrigir essas desigualdades, mas ainda enfrentam desafios significativos, como a falta de formação de profissionais para lidar com questões raciais e a baixa inclusão da população negra em pesquisas e programas de saúde mental.

Luta Antimanicomial e a Herança de Juliano Moreira

O movimento antimanicomial brasileiro, consolidado na década de 1980, encontrou em Juliano Moreira um precursor intelectual e prático. A Lei n o 10.216/2001, que regulamenta a reforma psiquiátrica no Brasil, foi influenciada por ideias que Juliano já defendia no início do século XX, como a substituição do modelo de asilo por uma rede de cuidados comunitários e humanizados.

Embora Moreira tenha vivido em uma época anterior à formulação de um movimento antimanicomial organizado, suas ações anteciparam princípios fundamentais dessa luta:

  • Humanização do cuidado: Juliano rejeitou o encarceramento e os métodos punitivos, propondo abordagens terapêuticas e educacionais.
  • Interdisciplinaridade: Enfatizou a necessidade de compreender o paciente em suas dimensões sociais, culturais e emocionais.
  • Combate ao estigma: Seu combate ao racismo eugenista ajudou a desconstruir estigmas que associavam doenças mentais a características raciais.

Nos dias atuais, o movimento antimanicomial enfrenta retrocessos, como cortes no financiamento de serviços comunitários e a persistência do modelo de internação em instituições psiquiátricas. A luta por um cuidado em liberdade, inclusivo e interseccional, reforça a relevância dos princípios defendidos por Juliano Moreira.

Eugenia, Raça e Saúde Mental: Reflexões Atuais

A luta de Juliano Moreira contra a eugenia continua sendo um marco na ciência brasileira. Durante o período em que viveu, o movimento eugenista era dominante tanto no Brasil quanto no exterior. Ele foi um dos poucos intelectuais que desafiou essas ideias, denunciando o uso da ciência para justificar a exclusão e a violência contra grupos marginalizados.

No contexto contemporâneo, embora o discurso explícito da eugenia tenha sido desacreditado, suas práticas ainda encontram ecos em formas sutis de exclusão, como:

  • Racismo institucional na saúde: A negligência no atendimento a populações negras e indígenas.
  • Desigualdade no acesso a diagnósticos: Pessoas negras e periféricas frequentemente enfrentam barreiras no acesso a diagnósticos adequados e a tratamentos especializados.
  • Disparidades no encarceramento psiquiátrico: A interseção entre racismo e classismo resulta em maior institucionalização de pessoas negras em instituições psiquiátricas.

Inspirados pelo trabalho de Juliano Moreira, acadêmicos e militantes têm promovido estudos que desconstroem a “neutralidade” da ciência e destacam as formas como a raça e a classe social continuam a influenciar o acesso à saúde mental e a percepção de doenças mentais.

Juliano Moreira e os Movimentos Antirracistas

O legado antirracista de Juliano Moreira vai além de seu combate às teorias científicas racistas. Sua própria existência como um homem negro em um campo elitista e racista foi um ato de resistência. Ao conquistar espaços de prestígio na academia e na medicina, ele abriu caminhos para que outras pessoas negras pudessem desafiar estruturas de poder.

Hoje, o movimento negro resgata sua memória como um exemplo de como a ciência pode ser usada como ferramenta de resistência. Além disso, sua atuação inspira novas gerações a integrar saúde mental e raça como temas fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa.

O Presente e o Futuro do Legado de Juliano Moreira

Juliano Moreira antecipou debates que hoje são centrais para as políticas públicas e os movimentos sociais: o direito à saúde mental como um direito humano, a luta contra o racismo científico e a importância da humanização do cuidado.

A expansão de seu legado exige:

  • Políticas públicas antirracistas na saúde mental:

Promover maior inclusão e atendimento equitativo para populações negras e periféricas.

  • Formação interdisciplinar de profissionais: Integrar raça, classe e gênero no ensino de saúde mental.
  • Ações de memória e reconhecimento: Juliano Moreira ainda é pouco conhecido no Brasil. Mais iniciativas de divulgação e educação podem ajudar a consolidar seu legado.

Sua trajetória mostra que a ciência só pode ser verdadeiramente transformadora quando desafia as estruturas de poder que perpetuam desigualdades. O resgate de sua obra é um passo essencial para construir um Brasil mais inclusivo e justo.

 


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ARTIGO SOBRE VIRGINIA BICUDO

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Coluna da Tamiris

Olá, meu nome é Tamiris Eduarda, sou estudante de Psicologia, educadora social e terapeuta ABA infantil. Dedico-me a pesquisar e escrever sobre a saúde mental da população negra, periférica, indígena e LGBTQIAPN+, com o objetivo de ampliar debates sobre diversidade, inclusão e a luta por equidade no campo psicológico.

Minha trajetória é marcada por um interesse profundo em compreender como fatores sociais, históricos e culturais influenciam o bem-estar psíquico das comunidades marginalizadas. Esse interesse nasceu da percepção de que, muitas vezes, a psicologia tradicional negligencia essas experiências e que é urgente promover práticas mais inclusivas e interseccionais.

Meus principais temas de estudo incluem psicologia racializada, educação inclusiva e a importância de compreender a subjetividade de crianças e adolescentes. Acredito que entender as experiências individuais e coletivas, respeitando o contexto social de cada pessoa, é essencial para uma prática psicológica efetiva e transformadora.

Minha visão profissional é guiada pelo compromisso com uma abordagem humanizada e interseccional, que valorize as especificidades de cada indivíduo e enfrente as desigualdades estruturais. Busco construir um espaço de acolhimento e escuta, onde as histórias e as vivências sejam respeitadas, e onde cada pessoa possa encontrar apoio para alcançar seu potencial pleno.

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