Abordagem Antirracista na Saúde Mental
Uma abordagem antirracista na saúde mental exige a reformulação de políticas públicas e práticas institucionais. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciada por Juliano Moreira e Virginia Bicudo, representa um marco importante nesse sentido, mas ainda há muito a ser feito.
Quem foi Virgínia Leone Bicudo
Virginia Leone Bicudo (1910-2003) foi uma socióloga e psicanalista brasileira pioneira nos estudos sobre relações raciais e saúde mental no Brasil. Primeira mulher negra psicanalista não médica do país, Virginia dedicou sua vida a desconstruir os paradigmas que sustentavam o racismo e a exclusão social. Descendente de imigrantes italianos e africanos, ela enfrentou os desafios impostos pelo racismo e pelo machismo em sua trajetória acadêmica e profissional.
Segundo Schwarcz (1993), Virginia “foi uma das principais vozes a apontar que a suposta democracia racial brasileira era um mito, pois as desigualdades sociais e raciais eram evidentes na estrutura do país”. Seu trabalho é essencial para compreender as interseções entre raça, classe e saúde mental, tendo influenciado áreas como a sociologia, a psicanálise e o ativismo social.
Sua trajetória
Virginia nasceu em São Paulo, filha de uma mãe italiana e de um pai negro, e cresceu em um ambiente de tensões sociais ligadas à questão racial. Apesar das barreiras impostas pela sociedade, formou-se em Ciências Sociais pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
Na década de 1940, dedicou-se aos estudos das relações raciais no Brasil, integrando a equipe do antropólogo Donald Pierson em um projeto financiado pela UNESCO. Nesse período, ela produziu a dissertação “Atitudes dos negros em relação à cor” (1945), que marcou sua contribuição ao desmascarar o mito da democracia racial no país.
Virginia também foi uma das pioneiras na formação psicanalítica no Brasil. Em um contexto onde a psicanálise era restrita aos médicos, ela desafiou as normas e tornou-se a primeira psicanalista não médica certificada, recebendo formação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Como destaca Mattos (2008), “a ousadia de Virginia em se inserir em espaços ocupados majoritariamente por homens brancos evidencia seu papel não apenas como acadêmica, mas também como militante em prol de mudanças estruturais”.
Estudos e contribuições de Virginia Bicudo
- Estudos sobre relações raciais:
Virginia foi uma das primeiras a abordar as relações raciais no Brasil sob uma perspectiva sociológica e psicanalítica. Sua dissertação revelou como o racismo estruturado impactava a saúde mental e as interações sociais da população negra. Ela argumentava que “o preconceito de cor não era apenas um fenômeno individual, mas uma estrutura social que moldava as oportunidades e os sentimentos de pertencimento dos indivíduos” (Bicudo, 1945). - Psicanálise e saúde mental:
Como psicanalista, Virginia foi uma precursora na análise do impacto das desigualdades sociais no inconsciente coletivo. Ela adaptou conceitos freudianos ao contexto brasileiro, investigando como o racismo e a exclusão social afetam o desenvolvimento psíquico. Seu trabalho é citado como essencial na consolidação da psicanálise como uma prática inclusiva no Brasil. - Educação e sociologia:
Virginia também foi uma das primeiras intelectuais brasileiras a criticar o sistema educacional excludente e a analisar como as teorias racistas sustentavam a exclusão das populações marginalizadas.
Luta antimanicomial
Virginia Bicudo foi uma crítica contundente do modelo manicomial brasileiro, que utilizava o isolamento como principal forma de tratamento para pessoas com transtornos mentais. Ela denunciava a forma como o racismo e o classismo influenciavam os diagnósticos psiquiátricos e reforçavam a exclusão social.
De acordo com Amarante (1995), Bicudo “foi uma das primeiras intelectuais a relacionar desigualdade social e saúde mental, apontando que a institucionalização dos transtornos mentais muitas vezes era uma resposta às opressões estruturais, e não uma necessidade médica”.
Virginia defendeu a reforma psiquiátrica e o cuidado comunitário, alinhando-se ao movimento antimanicomial que floresceu no Brasil nas décadas seguintes. Seu trabalho foi precursor das mudanças que culminaram na aprovação da Lei 10.216/2001, que transformou o modelo de assistência psiquiátrica no país.
Estudos sobre sociologia e eugenia
Durante o início do século XX, o Brasil foi palco de teorias eugenistas que influenciaram políticas públicas e discursos acadêmicos. Essas ideias, baseadas na “melhoria” da população por meio da miscigenação e do embranquecimento, foram criticadas por Virginia Bicudo.
Em sua análise sociológica, ela argumentava que “as teorias eugenistas serviam como justificativa para a marginalização das populações negras e indígenas, perpetuando a exclusäo social e racial” (Bicudo, 1947). Sua critica as politicas higienistas foi um marco na sociologia brasileira, oferecendo uma perspectiva antirracista em um momento em que esses discursos eram amplamente aceitos.
Como destaca Ribeiro (2020), “Virginia Leone Bicudo foi pioneira em demonstrar que a ciência poderia ser usada como ferramenta de opressão, mas também como meio de transformação social, ao desconstruir mitos e apontar soluções inclusivas”.
Perspectiva Sociológica e Psicanalítica nos Estudos de Virginia Bicudo
Virginia Leone Bicudo integrou duas abordagens distintas, mas complementares, para compreender e analisar as relações raciais no Brasil: a sociologia e a psicanálise. Essa articulação foi pioneira ao fornecer ferramentas teóricas e práticas para investigar o impacto do racismo estrutural não apenas como fenômeno social, mas também como um elemento que molda a subjetividade e a saúde mental dos indivíduos.
A Perspectiva Sociológica
A sociologia de Virginia Bicudo insere-se em um momento de grande debate sobre a questão racial no Brasil. Durante as décadas de 1930 e 1940, prevalecia o mito da democracia racial, uma narrativa que negava o racismo estrutural ao afirmar que o Brasil era uma sociedade miscigenada e livre de conflitos raciais.
Em sua dissertação “Atitudes dos negros em relação à cor” (1945), Bicudo desconstrói essa ideia, apontando como o racismo estava profundamente enraizado nas estruturas sociais. Ela mostrou que a discriminação racial influenciava a forma como os negros se percebiam e como eram percebidos, afetando suas oportunidades educacionais, econômicas e sociais.
Virginia utilizou métodos qualitativos para registrar as vozes da população negra, revelando como o preconceito racial afetava não apenas o coletivo, mas também as experiências individuais. Essa abordagem foi inovadora porque evidenciou o impacto do racismo nas interações interpessoais e na formação de identidade, conectando questões sociais e psicológicas.
“As relações raciais no Brasil não são neutras; elas estão impregnadas de hierarquias simbólicas que condicionam os lugares sociais que indivíduos podem ou não ocupar” (Bicudo, 1945).
A Perspectiva Psicanalítica
A formação psicanalítica de Virginia Bicudo trouxe uma dimensão subjetiva aos seus estudos sobre raça. Sua experiência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo permitiu que ela abordasse as relações raciais a partir de processos inconscientes, explorando como o racismo afeta a saúde mental dos indivíduos.
Virginia analisava como o preconceito racial era internalizado pelas pessoas negras, levando à formação de traumas, baixa autoestima e sensação de não pertencimento. Inspirada em conceitos freudianos, ela mostrou que o racismo não é apenas um fenômeno externo, mas também atua no nível inconsciente, moldando desejos, medos e angústias.
Um exemplo importante foi sua investigação sobre o impacto do racismo na infância. Virginia apontou que, desde cedo, crianças negras internalizam mensagens de inferioridade transmitidas pela sociedade, o que afeta seu desenvolvimento psíquico.
“O preconceito de cor é internalizado desde cedo, produzindo feridas psíquicas que se manifestam em formas de ansiedade, depressão e autossabotagem” (Bicudo, 1947).
A Integração das Abordagens
A principal contribuição de Virginia Bicudo foi integrar as abordagens sociológica e psicanalítica para oferecer uma visão mais ampla sobre as relações raciais no Brasil. Sua análise revelou que o racismo atua tanto no nível estrutural quanto no individual, perpetuando desigualdades e moldando subjetividades.
Enquanto a sociologia explicava as dinâmicas sociais que sustentam o racismo, a psicanálise permitia compreender como essas dinâmicas afetam o inconsciente. Essa integração é visível em seus estudos sobre:
- Racismo e Saúde Mental:
Virginia argumentava que o racismo era uma das principais causas de sofrimento psíquico na população negra. Ela demonstrou que as violências simbólicas e materiais geravam sentimentos de exclusão e inadequação, contribuindo para transtornos como depressão e ansiedade. - Identidade e Subjetividade:
Sua pesquisa explorou como o preconceito racial afeta a construção da identidade, especialmente em crianças e jovens. Para ela, a internalização do racismo era uma forma de controle social que limitava o potencial criativo e transformador dos indivíduos negros. - Psicanálise da Exclusão:
Virginia foi pioneira ao adaptar os conceitos psicanalíticos ao contexto brasileiro, desafiando os pressupostos eurocêntricos da disciplina. Ela argumentava que a exclusão social e o racismo deveriam ser reconhecidos como fatores determinantes na formação psíquica.
Avanços na Temática
O legado de Virginia Bicudo abriu caminho para estudos interseccionais que articulam raça, classe, gênero e subjetividade. Pesquisadores contemporâneos, como Sueli Carneiro e Abdias do Nascimento, dialogaram com suas ideias ao evidenciar que o racismo afeta tanto o coletivo quanto o íntimo, perpetuando desigualdades estruturais e psíquicas.
Além disso, os estudos sobre racismo e saúde mental ganharam relevância nas últimas décadas, inspirando práticas terapêuticas que consideram as especificidades da experiência racial.
Como observa Carneiro (2005):
“O trabalho de Virginia Bicudo foi fundamental para consolidar a psicanálise no Brasil e torná-la uma ferramenta de emancipação, ao invés de exclusão.”
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