A experiência da diáspora negra, marcada pelo legado histórico da escravidão e pela perpetuação do racismo estrutural, pode ser compreendida por meio de diversas lentes, entre elas as da psicologia, da história e das epistemologias africanas. A metáfora do “borderline” surge aqui como uma chave interpretativa para compreender as
vivências liminares de pessoas negras na diáspora. Nesse contexto, “Maafa”, termo suaíli que significa “grande desastre”, evoca o trauma coletivo gerado pelo tráfico transatlântico de escravizados e seus desdobramentos contemporâneos. Este ensaio propõe analisar a vida “na borda” enquanto metáfora clínica, existencial e histórica, buscando articular caminhos de resiliência e resistência, ancorados no conceito do self coletivo.
A Maafa e o Trauma Histórico-Coletivo
A Maafa é o marco inicial de um processo de desumanização que atravessa séculos. O tráfico transatlântico, a colonização e a institucionalização do racismo não só arrancaram milhões de africanos de suas terras, como também fragmentaram suas identidades e laços culturais. Esse trauma não desapareceu; ele se perpetua nas relações contemporâneas de poder, nas desigualdades sociais e nas violências simbólicas enfrentadas por negros ao redor do mundo.
O conceito de trauma intergeracional, amplamente discutido na psicanálise, encontra eco nas experiências da diáspora negra. Contudo, é insuficiente compreender essa dor apenas no âmbito individual. Na tradição africana, a construção do self é coletiva, envolvendo ancestralidade, comunidade e espiritualidade. O sofrimento não é apenas pessoal, mas compartilhado, assim como a cura e a resistência.
Maafa, Self Coletivo e Cura na Perspectiva Africana
A metáfora borderline, embora útil, é limitada quando aplicada a experiências negras. Isso porque ela se ancora em categorias individualistas de sofrimento, típicas da psicologia ocidental. Em contrapartida, a perspectiva africana do self coletivo enfatiza a ancestralidade, a comunidade e a espiritualidade como formas de reconstruir o sujeito e ressignificar o trauma.
O conceito do self coletivo encontra expressão em práticas como o Ubuntu, que afirma: “Eu sou porque nós somos”. A identidade é construída em relação aos outros, tanto os vivos quanto os ancestrais. Essa visão desestabiliza o foco individualista da psicologia ocidental, sugerindo que a cura ocorre não apenas no nível pessoal, mas no reencontro com o coletivo.
Práticas espirituais e culturais da diáspora, como cultuar Èsú , também revelam o poder do coletivo. Èsú , orixá do panteão Yorubá associado ao movimento, à transformação e à encruzilhada, simboliza a capacidade de integrar múltiplas dimensões da existência — pessoal, comunitária e ancestral — em um processo contínuo de cura e resistência.
A Borda como Espaço de Resistência Coletiva
A borda, não é apenas um lugar de vulnerabilidade. Para a diáspora negra, ela também é um espaço de criação, onde novas formas de ser e de existir podem emergir a partir da coletividade. O self coletivo transforma a borda em um espaço de compartilhamento, onde o sofrimento é dividido, mas também onde se constrói força e solidariedade.
É na borda que o vazio imposto pela Maafa encontra sua antítese: a conexão com o passado e com o outro. A experiência de viver “na borda” pode ser ressignificada como uma oportunidade de reinventar identidades de forma coletiva, integrando a memória ancestral e as demandas contemporâneas.
In-Conclusão
Entre o borderline e a Maafa, entre o trauma individual e o coletivo, emerge a complexidade da experiência negra na diáspora. Reconhecer o papel do self coletivo como elemento central na cura e na resistência é essencial para superar as limitações das perspectivas individualistas.
A metáfora da “brasa em um monte de cinzas” é utilizada na terapia para tratar o transtorno de personalidade borderline. A ideia é encontrar um ponto de desejo no paciente, soprar nele com cuidado para que a chama da vida retome. Para a subjetividade negra, o soprar com cuidado é movimentar a força vital, o axé e o aquilombamento é essencial para isso.
Na borda, onde a fragmentação é uma ameaça constante, o coletivo/aquilombamento se torna a força unificadora. Ao resgatar a ancestralidade e integrar perspectivas africanas e ocidentais, é possível transformar o vazio em potência, reconstruindo identidades que, embora marcadas pelo sofrimento, encontram na coletividade sua maior fonte de resiliência e poder.
Bibliografia
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