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“Desencanto”: Afro-brasileiros e a Perda do Axé – Um Olhar Psicanalítico Afrocentrado

Este ensaio explora o impacto da perda do Axé — conceito de energia vital nas tradições afro-brasileiras — na saúde mental dos afro-brasileiros, sob a perspectiva da psicanálise afrocentrada. Ao considerar as complexas relações entre racismo estrutural, intolerância religiosa e perda de conexão espiritual, busca-se entender como essa desconexão afeta o bem-estar psíquico e identitário. Este trabalho propõe um modelo interpretativo que considera a espiritualidade e a cultura afro-brasileira como  fundamentais para a resiliência psíquica e para a reconstrução de uma identidade integrada.

Introdução

No contexto das religiões afro-brasileiras, o Axé é o princípio vital, a energia que mantém a conexão entre o mundo material e o espiritual, sendo também a essência
que assegura o bem-estar e a identidade dos praticantes. Cultivado por meio de rituais e expressões culturais, o Axé não se restringe ao âmbito religioso; ele é também um suporte psíquico e um reservatório de identidade para os afro-brasileiros. Contudo, a perda dessa energia vital ou sua interrupção, frequentemente causada pelo racismo, representa uma desconexão espiritual que pode desestabilizar o bem-estar mental e emocional, levando ao desencanto.

A psicanálise afrocentrada oferece uma perspectiva crítica para analisar esse fenômeno, reconhecendo o impacto profundo que a perda de conexão cultural e espiritual tem sobre a saúde mental dos afro-brasileiros. Este ensaio examina essa relação, propondo que a revalorização do Axé, além de ser um recurso espiritual, constitui também uma ferramenta de saúde psíquica e de fortalecimento identitário.

1. O Axé e sua Importância para a Estrutura Psíquica

O Axé, no contexto afro-brasileiro, é uma força vital que abrange tanto o corpo quanto a psique, criando uma conexão essencial entre o indivíduo e suas raízes culturais e ancestrais. É a base de toda a existência e permeia cada ser, proporcionando harmonia e equilíbrio. Ele é transmitido e fortalecido por meio de práticas religiosas, oferendas, cânticos, danças e outros rituais que visam renovar essa energia e reforçar o vínculo com os ancestrais.

Para a psicanálise afrocentrada, o Axé funciona como uma base de sustentação psíquica, permitindo que o sujeito negro preserve uma identidade coerente e se sinta integrado em seu ambiente. Essa perspectiva vê o Axé como um “reservatório psíquico” essencial, uma fonte de energia simbólica e emocional que reforça o self e a identidade cultural do sujeito. A perda do Axé, então, representa uma ruptura no funcionamento psíquico, gerando sentimentos de vazio e de alienação, pois o sujeito se vê desconectado de sua base espiritual e cultural.

Ao desconectar-se do Axé, o afro-brasileiro experimenta uma perda simbólica que não é apenas espiritual, mas também psicológica, desestabilizando sua capacidade de manter uma identidade saudável. Segundo Fanon (1952), a identidade do negro é constantemente ameaçada em uma sociedade que desvaloriza sua cultura, o que gera uma alienação profunda e impede a autopercepção positiva do sujeito.

2. Racismo Estrutural, Racismo Religioso e o Trauma Psíquico

O racismo estrutural e o racismo religioso no Brasil são fenômenos históricos que afetam a prática das religiões afro-brasileiras e o bem-estar de seus adeptos. Para Achille Mbembe (2019), o racismo e a negação da cultura afro-brasileira resultam em uma exclusão social e em um “neocolonialismo” que desumaniza o negro, gerando um trauma psíquico contínuo. A impossibilidade de viver livremente sua espiritualidade priva o afro-brasileiro do contato direto com o Axé, o que representa uma perda dolorosa e traumática de suas bases culturais.

Esse afastamento forçado das práticas espirituais — que historicamente são criminalizadas e marginalizadas — gera a “melancolia identitária”. Essa condição ocorre quando o indivíduo é impedido de acessar e expressar sua identidade plena, sendo levado a um estado de “luto não reconhecido” pela sociedade. Na psicanálise, esse tipo de luto é interpretado como uma melancolia, pois o sujeito perde um “objeto” simbólico — sua cultura e espiritualidade — sem que essa perda seja socialmente validada.

A interrupção da prática do Axé, seja pela violência direta ou pela marginalização religiosa, provoca, portanto, um “luto cultural”. A psicanálise afrocentrada considera que o sofrimento psíquico que surge da desconexão com o Axé é uma forma de trauma coletivo e pessoal, originado da internalização de uma narrativa de desvalorização cultural. Esse trauma se manifesta em sintomas como tristeza crônica, sentimentos de desvalorização, alienação e desconexão, os quais muitas vezes se configuram como depressão.

3. “Desencanto”: A Ruptura com o Axé na Psicanálise Afrocentrada

A perda do Axé gera uma espécie de “depressão existencial”, na qual o indivíduo experimenta uma desconexão com suas origens e um esvaziamento de seu self cultural. Sigmund Freud (1917) descreve a melancolia como um processo psíquico em que o ego se torna autocrítico, identificando-se com o objeto perdido. No caso dos afro-brasileiros, o “objeto perdido” é a própria cultura e espiritualidade, que são forçadas a se esconder ou são desprezadas pela sociedade dominante.

Entretanto, a abordagem afrocentrada expande essa compreensão ao considerar a perda cultural e espiritual como uma perda essencial que atinge o próprio núcleo identitário do afro-brasileiro. O Axé funciona como um “objeto transicional”, que representa um elo seguro com a ancestralidade e a cultura. Sua perda não pode ser substituída por outros objetos, pois representa uma fonte única de fortalecimento psíquico e de identidade. A desconexão espiritual, assim, gera uma forma de melancolia que vai além da depressão individual, constituindo-se como uma depressão coletiva, refletida no corpo e na mente dos afro-brasileiros que são privados de sua cultura.

Essa depressão coletiva se manifesta como um desencanto profundo com a vida e com a sociedade, onde o sujeito sente que uma parte essencial de si mesmo está ausente. Esse processo gera sintomas de vazio, perda de motivação, desesperança e esgotamento emocional — todos associados ao afastamento do Axé, a fonte vital de energia e de propósito.

4. A Reconexão com o Axé como Caminho Terapêutico

A reconexão com o Axé e com as práticas culturais afro-brasileiras é essencial para a preservação da saúde mental dos afro-brasileiros. Práticas de autocuidado, como a criação de espaços comunitários e seguros para a expressão cultural e espiritual são fundamentais para a revitalização do Axé.

Essa reconexão não apenas fortalece a identidade do sujeito, mas também resgata o sentimento de pertencimento e continuidade com seus ancestrais, elementos essenciais para a reconstrução de um self saudável. A psicanálise afrocentrada reconhece que o Axé fornece uma base de resiliência psíquica, permitindo que o indivíduo recupere sua autoestima, reafirme sua identidade cultural e encontre um sentido de propósito.

Ao promover a valorização da espiritualidade e da cultura afro-brasileira como elementos centrais para o bem-estar psíquico, a reconexão com o Axé oferece ao afro-brasileiro a possibilidade de superar o trauma da desconexão e construir uma psique integrada. Esse processo de resgate e reconexão, pode ser visto como um caminho de cura, onde o sujeito se reapropria de sua identidade e reconstrói seu vínculo com o sagrado, permitindo que sua energia vital seja renovada.

Conclusão

A perda do Axé representa, sob a ótica da psicanálise afrocentrada, uma ruptura profunda que impacta diretamente a estrutura psíquica do afro-brasileiro. O racismo estrutural e o racismo religioso contribuem para uma desconexão cultural e espiritual que afeta negativamente a saúde mental, levando a sintomas de desencanto. Para os afro-brasileiros, o Axé não é apenas um recurso espiritual; é uma fonte de identidade, de resistência e de cura.

A reconexão com o Axé e a valorização das práticas culturais afro-brasileiras constituem um processo terapêutico e um caminho de resgate identitário, permitindo que o afro-brasileiro recupere o bem-estar psíquico e a conexão com sua ancestralidade. A psicanálise afrocentrada, ao reconhecer a importância do Axé e da cultura como bases para a saúde mental, aponta para uma abordagem terapêutica que privilegia a totalidade do sujeito e a força de sua identidade ancestral.

Referências

  • Fanon, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • Freud, Sigmund. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileiras das Obras Completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1917/1974
  • Kilomba, G. (2008). Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó.
  • MBEMBE, A.. (2018) Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
  • Nogueira, S. (2020). Intolerância religiosa [livro eletrônico] Pólen, 2020. (Coleção Feminismos Plurais)
  • Santos, Juana Elbein dos. Os nàgô e a morte. Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 1986.

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Prazer, essa sou eu!

Me chamo Kizye, “aquela que veio pra ficar”, mulher preta de pele clara, sou mãe do Zuri, “o belo”, esposa do Paulo.
Sou feita no Santo há 16 anos, filha de Xangô e Oxum. Sou sacerdotisa de Umbanda e Quimbanda.
Pesquisadora independente da Ancestralidade e Filosofia Africana Yorubá.
Psicanalista Decolonial Afrocentrada, supervisora clínica Racializada e Afrocentrada, consultora antirracista, facilitadora de terapia em grupo de afrodescendentes, atuo em grupos de estudos onde ensino e aprendo: filosofia Yorubá, psicanálise antirracista, Black Psychology, clínica racializada e afrocentrada.
Estudante de filosofia.
Sou idealizadora do Grupo Odù e do Projeto Aquilombamente.

“Se quer ir rápido vá sozinho, se quer ir longe, vá em grupo“

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