Introdução
“Ebó de ofó” é a oferenda do verbo, o sacrifício da palavra, a cura pela fala encantada. No contexto dos terreiros de Candomblé e Umbanda, onde cada gesto, cada folha, cada som carrega um axé, a escuta não é apenas uma técnica — é um fundamento. Este ensaio propõe a escuta terapêutica como um ebó: um ato sagrado de cuidado que acolhe as dores, travessias e encruzilhadas do povo de axé com reverência, ancestralidade e compromisso ético-político.
Corpo-terreiro: o sujeito de axé como campo de escuta
O povo de terreiro é constituído na circularidade, na oralidade e no axé que atravessa corpos, cantos e silêncios. A escuta terapêutica que se propõe neste ensaio parte do reconhecimento do corpo como terreiro: um espaço ritual, atravessado por encantamentos, interditos, memórias ancestrais e histórias silenciadas.
Ouvir o povo de axé não é apenas ouvir suas palavras, mas escutar seus orixás, suas entidades, seus interditos, suas perdas atravessadas pelo racismo religioso e pelo epistemicídio. A escuta, portanto, precisa ser descolonizada e enraizada na cosmopercepção que este povo carrega.
Ofó: palavra que movimenta o mundo
Na tradição iorubá, ofó é o poder encantado da palavra. O verbo cria, transforma, cura e destrói. A fala é instrumento de axé e, quando intencionalizada com ética e sabedoria, torna-se tecnologia de libertação.
Assim, o ebó de ofó é mais do que uma metáfora: é uma prática terapêutica que trata a fala como oferenda, como ritual de reconexão. É o momento em que o sujeito de axé entrega suas dores aos pés do orixá, confiando na escuta do outro como espelho do axé ancestral que o habita.
Escuta como oferenda: fundamentos ético-terapêuticos
A escuta terapêutica afrocentrada para o povo de terreiro não se funda na neutralidade da clínica ocidental, mas na responsabilidade afetiva e ancestral do acolhimento. Escutar é oferendar presença. É suspender o julgamento e abrir o corpo para o que chega, mesmo quando vem com Exu, na forma de contradição, ou com Obaluaiê, na forma de dor latente.
Nesse sentido, a escuta como ebó de ofó se ancora em três fundamentos:
- Responsabilidade ancestral: reconhecer que ao escutar um filho de santo, escuta-se também a sua roça, seus mais velhos, seus guias, seus encantados.
- Cuidado como reciprocidade: o terapeuta de axé também se cura ao escutar; o axé se move em duas vias.
- Silêncio como espaço ritual: o silêncio na escuta não é ausência, é preparo, é solo fértil onde a palavra encantada pode brotar.
O terreiro como clínica: cura coletiva e espiritual
Na encruzilhada entre espiritualidade e saúde mental, o terreiro já é, há séculos, um espaço de cura. Nele se tratam males do corpo e do espírito, da alma e da memória. No entanto, ainda é necessário construir pontes entre saberes terapêuticos tradicionais e práticas clínicas comprometidas com a vida negra.
Ao pensar o ebó de ofó como prática terapêutica, propõe-se um gesto de restituição simbólica: devolver ao povo de axé a legitimidade de suas próprias formas de cura. Isso significa reconhecer a escuta de mãe-de-santo como saber clínico, o aconselhamento de Preto-Velho como sabedoria terapêutica, e o xirê como reinvenção do corpo através do transe.
Considerações finais: ouvir como quem acende vela
Encantar a escuta é reumanizar o cuidado. É reconhecer que, para o povo de terreiro, palavra é caminho, é axé, é promessa. O ebó de ofó é, portanto, a prática de escutar como quem prepara oferenda: com paciência, com zelo, com reverência ao invisível.
Que nossas escutas saibam acolher o silêncio dos que tiveram suas vozes abafadas. Que cada palavra dita em terreiro ou em consultório seja compreendida como partilha de uma herança ancestral. E que, ao escutar, possamos também curar — como quem oferece folha, fogo e canto aos pés do orixá.