O mito de Ayrá, que carrega Oxalá debilitado nas costas, é uma narrativa de força, sacrifício e transcendência. Esse mito nos permite explorar conceitos fundamentais
da psicanálise, como o arquétipo do Salvador e o Nome-do-Pai em Lacan. Ao interpretar essa história simbólica, podemos iluminar dinâmicas psíquicas que envolvem o cuidado, o fardo da responsabilidade e a relação do sujeito com a lei e o desejo do Outro.
Itan de Ayrá
Segundo o mito, Oxalá permaneceu injustamente preso durante sete anos no reino de seu filho, Xangô, sem que este soubesse do fato. Grandes calamidades ocorreram em todo o reino devido a essa injustiça e quando Xangô finalmente descobriu o que havia acontecido com o próprio pai, resgatou-o da prisão e ordenou que fossem organizadas grandes festas em todo o reino, em sua homenagem.
A festividade conhecida hoje como Águas de Oxalá remonta a esse acontecimento. No entanto, Oxalá estava muito alquebrado, ferido e entristecido. Apesar de toda a
atenção que recebeu, a única coisa que desejava era retornar ao seu próprio reino, em Ifé, onde Yemanjá, sua esposa, o aguardava. Xangô não podia acompanhá-lo pois precisava colocar em ordem o próprio reino e pediu a Ayrá que fizesse isso em seu lugar.
Foi assim que Ayrá tornou-se o companheiro de Oxalá, pois a viagem foi muito longa já que Oxalá andava muito devagar (conta-se também que Ayrá carregava
Oxalá nas costas) pelo fato de ainda estar se recuperando dos ferimentos que adquirira durante os sete anos de prisão. Durante o dia, eles caminhavam. À noite,
Oxalá sentia frio e precisava descansar. Para aquecê-lo e distraí-lo dos próprios pensamentos, Ayrá mandava que acendessem uma grande fogueira no acampamento. Oxalá observava o fogo e Ayrá passava longas horas contando-lhe histórias do povo de Oyó.
O Arquétipo do Salvador na Psicanálise
A figura de Ayrá se alinha com o arquétipo do Salvador, que, na psicanálise, pode ser analisado como uma expressão do desejo de reparação e transcendência.
1. Na Perspectiva Freudiana
– Cuidado e Transferência: Freud explora a dependência e o cuidado como aspectos fundamentais das relações humanas. Ayrá simboliza o cuidador que assume o papel de sustentação em um momento de fragilidade do Outro. Esse papel pode ser interpretado como uma projeção do desejo de controle sobre a vulnerabilidade do outro para evitar enfrentar a própria fragilidade.
– Supereu e Sacrifício: O arquétipo do Salvador também reflete a influência do Supereu, que exige um sacrifício constante em nome de ideais. Ayrá representa o sujeito que, ao carregar Oxalá, busca atingir uma posição de valor no campo simbólico, muitas vezes à custa de sua própria autonomia.
2. Na Perspectiva Junguiana
– O Salvador e o Processo de Individuação: Para Jung, o arquétipo do Salvador é uma manifestação do inconsciente coletivo que guia o sujeito no processo de integração de sua psique. Ayrá carrega Oxalá não apenas como um ato de cuidado, mas como uma jornada de autotranscendência, onde se confronta com seus próprios limites e potencialidades.
– A Religião como Estrutura Psíquica: Oxalá, como representação do Divino, simboliza o Eu Superior, enquanto Ayrá assume o papel de um ego disposto a superar os obstáculos para se conectar a algo maior.
3. Na Perspectiva Lacaniana
– A Função Simbólica de Ayrá
Ayrá, ao carregar Oxalá, ocupa o lugar do mediador que garante a continuidade da ordem simbólica. Esse papel é análogo ao do Nome-do-Pai, que regula o desejo e
insere o sujeito no campo da linguagem e da cultura. No entanto, ao assumir essa função, Ayrá também enfrenta o fardo da lei e a responsabilidade de sustentar a
autoridade divina.
– Oxalá e a Falibilidade do Nome-do-Pai
A vulnerabilidade de Oxalá simboliza a falibilidade da Lei e do simbólico. Para Lacan, o Nome-do-Pai não é uma garantia absoluta, mas uma construção que sempre contém uma falta. Essa falta é representada no mito pela necessidade de Ayrá carregar Oxalá, indicando que o sujeito deve enfrentar tanto a falha da autoridade quanto a própria responsabilidade de sustentá-la.
– Castração Simbólica e a Condição do Sujeito
O ato de carregar Oxalá pode ser visto como uma metáfora da castração simbólica, o processo que insere o sujeito no campo do desejo e da linguagem. Ayrá, ao carregar o peso do Outro, representa o sujeito dividido entre suas próprias demandas e as exigências do simbólico.
Implicações Clínicas
1. O Fardo do Salvador: Indivíduos que assumem o papel de salvadores podem estar tentando preencher uma falta simbólica ou atender ao desejo do Outro. Na clínica, é essencial explorar os limites entre o altruísmo e o autossacrifício, ajudando o paciente a identificar seus próprios desejos em meio às demandas externas.
2. Reconhecendo a Falibilidade da Lei: Assim como Oxalá no mito, figuras de autoridade na psique nem sempre são absolutas. Trabalhar com a falibilidade do Nome-do-Pai pode ajudar pacientes a lidar com decepções e a reconstruir sua relação com o simbólico.
3. Individuação e Autonomia: Ayrá representa o sujeito que enfrenta suas limitações para cumprir um propósito maior. Esse aspecto pode ser usado para explorar processos de individuação e desenvolvimento pessoal na terapia, equilibrando as responsabilidades externas com o autocuidado.
In-Conclusão
O mito de Ayrá que carrega Oxalá é uma narrativa simbólica, que pode ser analisada sob várias perspectivas psicanalíticas. Ayrá representa o sujeito que assume o fardo da lei e do desejo do Outro, enquanto Oxalá simboliza a autoridade Divina que, ao “falhar”, revela a complexidade da função simbólica. Integrando o arquétipo do Salvador e o conceito do Nome-do-Pai, essa análise nos ajuda a ter uma visão profunda sobre as dinâmicas psíquicas do cuidado, da responsabilidade e da transcendência. Na clínica, essas reflexões podem ajudar a abordar questões de sacrifício, limites e estruturação psíquica, contribuindo para o crescimento e a autonomia dos pacientes.
Bibliografia
– Freud, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
– Jung, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
– Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
– Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
– Roudinesco, Elisabeth. Lacan: A Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
– Verger, Pierre. Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997.