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O Arquétipo de Pomba Gira e o Mulherismo Africana: Uma Perspectiva Ancestral e Contemporânea

Este ensaio propõe uma reflexão sobre o arquétipo de Pomba Gira e sua relação com o Mulherismo Africana, abordando a ancestralidade feminina, a autonomia, e o poder
espiritual e social das mulheres negras. Através de autores e estudiosos da espiritualidade afro-brasileira e da filosofia do Mulherismo Africana, como Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, Clenora Hudson-Weems e Luiz Rufino, buscamos destacar a importância da ressignificação do poder feminino a partir de uma perspectiva afrocentrada.

Introdução

A figura de Pomba Gira, presente nas religiões afro-brasileiras, como Umbanda e Quimbanda, é frequentemente associada ao poder feminino, à sexualidade, à transgressão das normas sociais e à autonomia. Este arquétipo, embora muitas vezes mal compreendido e até demonizado, carrega uma complexidade que transcende o simples papel de entidade espiritual. Quando comparada ao Mulherismo Africana, uma filosofia que enfatiza o empoderamento da mulher africana e afrodescendente em conexão com sua ancestralidade e comunidade, percebemos profundas ressonâncias na maneira como essas duas tradições valorizam a mulher como pilar de resistência e transformação social.

Pomba Gira: Arquétipo de Autonomia e Poder Feminino

Pomba Gira é uma das entidades mais conhecidas e complexas das religiões afro-brasileiras. Ela é frequentemente descrita como uma mulher poderosa, sensual e independente, que domina o campo amoroso e sexual. Mais do que isso, Pomba Gira representa a mulher que reivindica seu espaço em um mundo frequentemente hostil ao poder feminino, especialmente ao poder da mulher negra.

Segundo Luiz Antonio Simas (2019), Pomba Gira não se limita ao campo sexual, mas representa uma força de autonomia, resistência e transformação. Ela simboliza a mulher que transgride os papéis sociais tradicionais, principalmente os impostos pela moralidade patriarcal e colonialista. Seu arquétipo, portanto, fala da liberdade de ser quem se é, independentemente das normas sociais restritivas.

Simas também enfatiza que Pomba Gira se torna um símbolo da subversão ao moralismo e à opressão racial, apontando para a necessidade de um olhar mais cuidadoso e profundo sobre sua função nas comunidades afro-brasileiras. Assim como Pomba Gira desafia as hierarquias de gênero e de poder, o Mulherismo Africana também busca uma crítica ao patriarcado, à colonialidade e às normas racistas que limitam o poder e a autonomia das mulheres africanas e da diáspora.

Mulherismo Africana: A Filosofia do Poder Feminino Ancestral

O Mulherismo Africana, termo cunhado por Clenora Hudson-Weems (2020), é uma filosofia que surgiu em resposta às limitações do feminismo ocidental. Para Hudson-Weems, o feminismo tradicional, com suas raízes eurocêntricas, não responde adequadamente às necessidades das mulheres africanas e afrodescendentes, pois ignora as questões de raça, ancestralidade e comunidade. O Mulherismo Africana coloca as mulheres negras no centro de suas comunidades, não apenas como indivíduos que lutam por seus direitos, mas como agentes que carregam uma responsabilidade ancestral de manter a continuidade e o bem-estar de suas sociedades.

Uma das principais diferenças entre o Mulherismo Africana e o feminismo convencional está na perspectiva comunitária. Enquanto o feminismo enfatiza a autonomia individual, o Mulherismo Africana valoriza o papel da mulher dentro de sua comunidade, seu papel como mãe, curadora, líder espiritual e social. Assim como Pomba Gira personifica o poder feminino que não pode ser domesticado ou controlado pelo patriarcado, o Mulherismo Africana celebra a mulher que mantém o equilíbrio entre sua própria autonomia e seu papel dentro da coletividade.

A socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (1997-2021) contribui com essa perspectiva ao afirmar que as estruturas patriarcais impostas pela colonização europeia são estranhas às formas tradicionais de organização social africana. Oyěwùmí argumenta que, antes da colonização, as sociedades africanas muitas vezes funcionavam de maneira mais igualitária em termos de gênero, e que o poder das mulheres, especialmente das mais velhas, era reverenciado.

O Mulherismo Africana busca resgatar esse poder ancestral e espiritual, muitas vezes representado por figuras como Pomba Gira, que é, em última análise, uma manifestação do poder feminino inato e divino.

Convergências Entre o Arquétipo de Pomba Gira e o Mulherismo Africana

Há várias convergências entre o arquétipo de Pomba Gira e os princípios do Mulherismo Africana. Ambos enfatizam a autonomia, a sexualidade e a força espiritual das mulheres negras, reconhecendo o papel central que elas desempenham na preservação e perpetuação de suas culturas.

1. Autonomia Feminina e Transgressão
Tanto Pomba Gira quanto o Mulherismo Africana desafiam as normas impostas pelo patriarcado e pela colonialidade. Pomba Gira, com sua imagem de uma mulher livre,
sensual e independente, encarna o desejo de romper com as limitações sociais. O Mulherismo Africana, por sua vez, promove a autonomia das mulheres negras dentro de um contexto comunitário e cultural que valoriza suas contribuições, resgatando seu poder ancestral.

2. Poder Espiritual
A espiritualidade é central tanto para o arquétipo de Pomba Gira quanto para o Mulherismo Africana. Pomba Gira é uma entidade profundamente espiritual, associada ao
poder oculto, à magia e à capacidade de interceder no plano material para trazer transformações profundas. Da mesma forma, o Mulherismo Africana reconhece o poder
espiritual das mulheres negras, especialmente em sua capacidade de conectar o mundo material com o mundo dos ancestrais.

3. O Papel das Mulheres como Guardiãs da Comunidade
No Mulherismo Africana, as mulheres são vistas como guardiãs da comunidade, responsáveis por manter a continuidade cultural e espiritual. Pomba Gira, com sua habilidade de lidar com forças espirituais e emocionais intensas, também desempenha um papel similar, sendo uma guia e protetora nas práticas espirituais afro-brasileiras.

4. Ressignificação do Poder Feminino
O arquétipo de Pomba Gira e o Mulherismo Africana ambos oferecem uma ressignificação do poder feminino. Para muitas mulheres negras, essas tradições e filosofias representam um caminho para se reconectar com suas raízes ancestrais, reafirmar sua identidade e reivindicar o poder que lhes foi negado pela história colonial e patriarcal.

Considerações Finais

O arquétipo de Pomba Gira e o Mulherismo Africana se encontram em uma encruzilhada de resistência, autonomia e espiritualidade feminina. Ambos rejeitam as limitações impostas pelo patriarcado ocidental e pela colonialidade, oferecendo às mulheres negras ferramentas para se reconectarem com suas ancestrais, suas comunidades e suas próprias forças interiores.

O resgate dessas tradições e filosofias é essencial para a construção de um futuro onde as mulheres negras possam ocupar seus espaços de poder, tanto espiritual quanto social, de forma plena e livre de opressões. Ao mesmo tempo, tais conceitos convidam todas as mulheres a refletirem sobre o verdadeiro significado de autonomia, poder e ancestralidade, em um mundo que ainda luta para reconhecer o valor dessas forças femininas ancestrais.

Referências
– HUDSON-WEEMS, Clenora. Mulherismo Africana. Ananse, 2020, São Paulo.
– OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A Invenção das Mulheres. Bazar do Tempo, 2021, Rio de Janeiro.
– SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Civilização Brasileira, 2018, Rio de Janeiro.

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Prazer, essa sou eu!

Me chamo Kizye, “aquela que veio pra ficar”, mulher preta de pele clara, sou mãe do Zuri, “o belo”, esposa do Paulo.
Sou feita no Santo há 16 anos, filha de Xangô e Oxum. Sou sacerdotisa de Umbanda e Quimbanda.
Pesquisadora independente da Ancestralidade e Filosofia Africana Yorubá.
Psicanalista Decolonial Afrocentrada, supervisora clínica Racializada e Afrocentrada, consultora antirracista, facilitadora de terapia em grupo de afrodescendentes, atuo em grupos de estudos onde ensino e aprendo: filosofia Yorubá, psicanálise antirracista, Black Psychology, clínica racializada e afrocentrada.
Estudante de filosofia.
Sou idealizadora do Grupo Odù e do Projeto Aquilombamente.

“Se quer ir rápido vá sozinho, se quer ir longe, vá em grupo“

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