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População Negra e Manicomialização: Racismo Estrutural e Exclusão Institucional

1. Introdução

O estudo das relações entre racismo estrutural e saúde mental no Brasil permite compreender como o passado colonial e escravocrata moldou não apenas as condições de vida da população negra, mas também as políticas públicas destinadas a ela, especialmente no campo da saúde mental. Durante séculos, a psiquiatria foi usada como uma ferramenta de segregação e controle, tratando a população negra como um “outro” racializado, desviante e perigoso. O impacto desse legado pode ser observado até hoje, nas desigualdades de acesso e nos estigmas enfrentados pela população negra nos serviços de saúde mental.

No Brasil pós-abolição, o racismo institucionalizado permaneceu como força estruturante das relações sociais e políticas. A abolição, que ocorreu sem medidas compensatórias ou políticas de inclusão, lançou milhões de negros em condições de miséria e vulnerabilidade social. Sem acesso à terra, educação ou trabalho digno, essas populações foram marginalizadas e patologizadas. No campo da saúde mental, práticas psiquiátricas reforçaram narrativas que associavam a negritude à incapacidade mental, à violência e ao descontrole, justificando intervenções institucionais que frequentemente culminavam em internações desnecessárias e desumanas.

O conceito de manicomialização vai além do encarceramento físico. Ele também se refere a práticas discursivas e institucionais que tratam determinados grupos sociais como incapazes de viver em sociedade, como ‘perigosos” ou “patológicos”. A psiquiatria, ao se aliar a essas práticas, desempenhou um papel central na exclusão e desumanização da população negra. Historicamente, a institucionalização dos negros nos manicômios funcionou como uma extensão do controle social exercido durante a escravidão, garantindo que a liberdade conquistada não resultasse em igualdade de oportunidades ou de direitos.

O presente artigo tem como objetivo explorar essa relação entre racismo estrutural e manicomialização, analisando a história das práticas psiquiátricas no Brasil, suas implicações contemporâneas e a necessidade urgente de uma reformulação das políticas de saúde mental. Com base em autores como Juliano Moreira, Virgínia Leone Bicudo, Lilia Schwarcz e Sueli Carneiro, busca-se evidenciar como o racismo estruturado moldou a percepção e o tratamento da saúde mental da população negra, bem como apontar caminhos para uma abordagem inclusiva e antirracista.

2. Racismo Estrutural e Saúde Mental no Brasil

O racismo estrutural no Brasil é resultado de séculos de escravidão e colonização, que criaram hierarquias raciais profundamente enraizadas na cultura e nas instituições do país. A saúde mental, como campo científico e político, não está imune a essas dinâmicas. Desde o século XIX, teorias científicas racistas moldaram a maneira como a população negra era vista e tratada no Brasil. Essas teorias, importadas da Europa, encontraram solo fértil em um país que precisava justificar as desigualdades raciais resultantes da escravidão.

Conforme Lilia Schwarcz destaca em O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930), a ciência do período pós-abolição usava teorias raciais para justificar a inferioridade dos negros e a necessidade de controle social sobre eles. A frenologia e a criminologia, por exemplo, associavam características físicas a comportamentos desviantes, criando uma ligação entre raça e patologia. Esses conceitos foram amplamente aceitos na psiquiatria brasileira, onde negros eram frequentemente diagnosticados com transtornos que justificavam sua exclusão social.

Sueli Carneiro, em Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (201 1), amplia essa discussão ao abordar a interseccionalidade entre raça, gênero e classe. Mulheres negras, por exemplo, eram frequentemente vistas como “histéricas” ou “instáveis”, enquanto homens negros eram associados à violência e à criminalidade. Essa patologização da população negra não era apenas um reflexo do racismo estrutural, mas também uma ferramenta ativa para manter a hierarquia racial e de gênero no Brasil.
A saúde mental no Brasil, nesse contexto, tornou-se mais uma arena onde o racismo se manifestava de maneira explícita. Negros eram vistos como “degenerados” e, por isso, sua saúde mental era negligenciada ou tratada de forma desumana. Essa negligência não apenas perpetuava as desigualdades raciais, mas também criava um ciclo de exclusão, em que a falta de cuidados adequados resultava em condições que reforçavam estereótipos raciais.

O racismo estrutural, entendido como um conjunto de práticas e normas que perpetuam desigualdades raciais de maneira sistêmica, impacta diretamente a saúde mental da população negra. No Brasil, a falta de reconhecimento do racismo como um fator determinante de saúde ainda é um desafio. Instituições de saúde frequentemente negligenciam as especificidades da população negra, resultando em diagnósticos errados, tratamentos inadequados ou até mesmo na ausência de cuidado.
Segundo Jurema Werneck (Saúde mental e racismo no Brasil), o racismo atua como um estressor crônico, capaz de desencadear ou agravar transtornos mentais, como depressão, ansiedade e transtorno de estresse póstraumático (TEPT). A vivência diária de discriminação racial, seja em espaços de trabalho, educação ou lazer, leva à internalização de sentimentos de inferioridade e ao isolamento social. Além disso, a precariedade das condições de vida em comunidades periféricas, onde a maioria da população negra reside, agrava ainda mais os impactos na saúde mental.

E crucial reconhecer que as teorias científicas racistas não apenas justificaram práticas discriminatórias no passado, mas também deixaram um legado que persiste em algumas abordagens da saúde mental contemporânea. Um exemplo disso é a associação automática entre negritude e criminalidade, um estigma que ainda influencia o comportamento de profissionais de saúde e o atendimento prestado à população negra.

3. Manicomialização e Controle Social da População Negra

A institucionalização da população negra nos manicômios é um reflexo do uso da psiquiatria como ferramenta de controle social. Durante o período pós-abolição, os manicômios não apenas abrigavam pessoas com transtornos mentais, mas também serviam como locais de confinamento para aqueles que eram considerados “indesejáveis” pela sociedade. Negros que não conseguiam se adaptar à nova ordem social, marcada pela urbanização e pelo trabalho assalariado, eram frequentemente internados com diagnósticos que mais refletiam preconceitos sociais do que condições médicas reais.

Casos históricos de manicômios no Brasil ilustram como essas instituições eram usadas para reforçar a exclusão social. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Hospício Pedro II, inaugurado em 1 852, recebia um número desproporcional de negros, muitos dos quais eram internados por razões que iam além de questões de saúde mental. A desumanização era uma constante, com relatos de superlotação, maustratos e falta de condições básicas de higiene e alimentação.

A psiquiatria, nesse contexto, foi instrumentalizada para justificar a exclusão da população negra, muitas vezes associando suas condições de vida a “falhas” intrínsecas de caráter ou biologia. Essa lógica serviu para desviar a atenção das condições estruturais que causavam sofrimento mental, como a pobreza, o racismo e a falta de acesso a direitos básicos.

A história da manicomialização no Brasil está intrinsecamente ligada ao projeto de exclusão social da população negra. Após a abolição da escravidão, o Estado brasileiro não ofereceu alternativas que possibilitassem a inserção social dos ex-escravizados. A ausência de políticas públicas efetivas resultou no crescimento de uma população marginalizada, vista como um “problema social” que precisava ser controlado. Nesse contexto, os manicômios se tornaram espaços de confinamento para aqueles que não se adequavam à lógica do trabalho assalariado ou ao ideal de “civilidade” imposto pela elite branca.

Relatos históricos indicam que negros internados em manicômios eram frequentemente diagnosticados com condições que não correspondiam a transtornos mentais reais, mas sim a preconceitos raciais. Termos como ‘insanidade moral” e “degeneração racial” eram usados para justificar essas internações. Essas práticas refletiam uma visão de mundo que patologizava a cultura e os comportamentos das populações negras, tratando-as como desviantes ou inferiores.

Um exemplo emblemático foi o uso de trabalho forçado em manicômios, onde negros eram internados sob a justificativa de tratamento, mas na prática eram explorados como mão de obra barata. Esses relatos evidenciam como as instituições psiquiátricas se alinharam às estruturas de controle social, perpetuando a lógica da escravidão mesmo após sua abolição formal.

4. Implicações Contemporâneas

Embora o Brasil tenha avançado em algumas áreas de saúde mental, as desigualdades raciais permanecem evidentes. Negros continuam sendo super-representados em instituições psiquiátricas e enfrentam barreiras significativas para acessar cuidados adequados. Dados recentes do SUS mostram que a população negra é menos propensa a receber diagnósticos precoces e tratamentos eficazes, o que contribui para a perpetuação do sofrimento mental e social.

De acordo com o Sistema Único de Saúde (SUS), em 2023, aproximadamente 65% das internações psiquiátricas no Brasil eram de pessoas negras, mesmo que representem pouco mais da metade da população. Além disso, a população negra é menos propensa a acessar serviços ambulatoriais ou programas de tratamento preventivo, enquanto apenas 25% dos pacientes negros em tratamento por transtornos mentais relatam acesso a psicoterapia regular, um recurso essencial para intervenções humanizadas e eficazes.

Um dado alarmante e que reforça a urgência de ações na saúde mental é o aumento do índice de suicídio entre a população negra. Segundo o Ministério da Saúde, de 2012 a 2021, houve um crescimento de 47% nos casos de suicídio entre pessoas negras no Brasil, enquanto a taxa entre pessoas brancas permaneceu estável. Esses números refletem o impacto cumulativo do racismo estrutural, da exclusão social e das violências cotidianas que essa população enfrenta.

A violência policial, frequentemente direcionada a comunidades negras, é outro fator crítico que afeta profundamente a saúde mental dessa população. Estudos indicam que a exposição contínua a agressões e mortes pela polícia gera traumas complexos, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e sensação de insegurança permanente. No entanto, essa realidade ainda é amplamente negligenciada no setting terapêutico. Muitas abordagens psicoterapêuticas não consideram os efeitos do racismo, da violência policial e da desigualdade social como elementos centrais no sofrimento psíquico da população negra. Como apontado por Almeida (2019), “o racismo não é apenas um contexto externo à clínica, mas um elemento estruturante do sofrimento psíquico da população negra.”

Além disso, o estigma racial continua a influenciar a forma como a saúde mental da população negra é percebida e tratada. Negros que apresentam comportamentos desviantes ou que sofrem de transtornos mentais são frequentemente vistos como “perigosos”, uma percepção que reflete séculos de racismo e criminalização.
Nos dias atuais, os efeitos desse histórico de exclusão e controle social ainda são visíveis. A super-representação de negros em instituições psiquiátricas reflete não apenas o racismo estrutural, mas também a falta de políticas de saúde mental inclusivas e culturalmente sensíveis.

Além disso, estudos recentes apontam que profissionais de saúde mental frequentemente reproduzem preconceitos raciais em seus atendimentos. Pesquisas qualitativas realizadas em clínicas e hospitais psiquiátricos mostram que negros são mais frequentemente descritos como “agressivos” ou “difíceis de tratar”, enquanto pacientes brancos recebem descrições mais neutras ou positivas. Esse viés racial não apenas compromete a qualidade do atendimento, mas também desestimula a população negra a buscar ajuda, perpetuando o ciclo de sofrimento mental.

O impacto do racismo na saúde mental da população negra vai além do indivíduo, afetando também as comunidades como um todo. A falta de acesso a serviços de saúde mental adequados contribui para a perpetuação de problemas sociais, como violência, desemprego e evasão escolar, criando um círculo vicioso de exclusão e vulnerabilidade. Como destaca Carneiro (2020), “enfrentar o racismo estrutural nas políticas de saúde mental exige uma abordagem que reconheça os traumas intergeracionais e a violência cotidiana como fatores centrais do adoecimento psíquico da população negra.”

5. Abordagem Antirracista na Saúde Mental

Uma abordagem antirracista na saúde mental exige a reformulação de políticas públicas e práticas institucionais. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciada por Juliano Moreira e Virginia Bicudo, representa um marco importante nesse sentido, mas ainda há muito a ser feito.

Juliano Moreira, reconhecido como um dos pioneiros na psiquiatria brasileira, desafiou as teorias racistas da época e promoveu uma visão mais humanizada da saúde mental. Já Virginia Bicudo, ao integrar perspectivas psicanalíticas e sociais, destacou a importância de considerar o contexto racial e cultural no tratamento psicológico.
A implementação de uma abordagem antirracista na saúde mental requer mudanças profundas nas políticas públicas, na formação de profissionais e nas práticas institucionais. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, liderada por figuras como Juliano Moreira e Virginia Bicudo, representa um marco importante nesse sentido, mas ainda há lacunas significativas que precisam ser preenchidas.

Quem foi Virgínia Leone Bicudo

Quem foi Juliano Moreira

Por muitos anos, a psicologia excluiu fatores de raça, classe e gênero, o que reflete um histórico de marginalização e negação das experiências e realidades de populações racializadas. Vale ressaltar que a construção da psicologia foi, e ainda é, predominantemente eurocêntrica, não apenas baseada em padrões brancos, mas também sendo construída por pessoas brancas para pessoas brancas. Isso se reflete nas teorias, nos métodos e nas práticas terapêuticas, muitas das quais não consideram as especificidades culturais, raciais e sociais dos grupos não brancos. De acordo com Lélia Gonzalez, a psicologia, como outras áreas do saber, foi estruturada de uma maneira que invisibiliza as realidades das populações negras e periféricas, sendo uma ciência marcada pelo “eurocentrismo e a supremacia branca” (Gonzalez, 2000).

Um dos principais exemplos dessa exclusão foi a abordagem de Sigmund Freud, que, embora tenha sido fundamental para o desenvolvimento da psicanálise, jamais questionou as implicações raciais e culturais no desenvolvimento psíquico. Sua teoria, amplamente utilizada até hoje, foi estruturada em um contexto europeu que não levou em consideração as experiências dos negros, indígenas e outros grupos marginalizados. Freud tratou de questões universais da psique humana, mas não atentou para as particularidades e opressões que atravessam a vida de pessoas racializadas. Essa ausência de uma perspectiva crítica sobre a racialização e o sofrimento psíquico gerado por ela é apontada por diversos pesquisadores que criticam o modelo eurocêntrico de Freud, como Daryl Baskin, que ressalta a falta de questionamento de Freud sobre a construção da psicanálise em um mundo colonialista e racista (Baskin, 2002).

Foi o trabalho de Frantz Fanon, um psiquiatra e filósofo martiniquês, que trouxe uma perspectiva crítica e revolucionária ao campo da saúde mental em relação ao

colonialismo, racismo e exclusão social. Fanon, seguindo a linha da psicanálise freudiana, foi um dos primeiros a desvendar as conexões entre opressão racial e sofrimento psíquico, oferecendo uma análise profunda das feridas psicológicas causadas pelo racismo estrutural e colonial. Ele argumentou que as psicopatologias nas populações colonizadas não podiam ser compreendidas sem levar em conta a violência histórica da colonização e a desumanização das populações negras. Em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), Fanon afirma que “o negro é apresentado como um ser a ser despojado, desqualificado, marcado por uma história de opressão e violência, em que se apaga a sua própria subjetividade” (Fanon, 1952, p. 98). Ele observa que as condições sociais e políticas das populações racializadas estavam diretamente ligadas ao sofrimento psíquico, e suas ideias sobre identidade, alienação e o impacto da colonização desafiaram as concepções de Freud, apontando lacunas significativas na psicanálise.

A crítica de Fanon é fundamental, pois ele não apenas desconstruiu a psicanálise freudiana, mas também estabeleceu um novo campo de estudos sobre a saúde mental das populações negras. Seus trabalhos, como Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra (1961 ), continuam a ser essenciais para compreendermos o sofrimento psíquico das pessoas negras, especialmente no contexto do racismo estrutural e da colonialidade. Em Os Condenados da Terra, Fanon denuncia a opressão racial como uma “ferida psíquica” que afeta tanto o colonizador quanto o colonizado, criando um ciclo de violência e alienação (Fanon, 1961, p. 85).

Se não fosse o trabalho de outros psicólogos e psicanalistas negros, como Fanon, a saúde mental da população negra jamais teria sido olhada de outra forma além do estigma do racismo. Esses profissionais, ao desafiar o pensamento predominante, trouxeram à tona a importância de considerar a identidade racial, o contexto social e a história de opressão nas práticas clínicas e nos modelos de diagnóstico. A falta de uma análise racializada nas primeiras abordagens da psicologia, particularmente da psicanálise, representa uma falha significativa que ainda precisa ser abordada e corrigida. Como afirmou Karina Kuperman (2011), “a psicologia no Brasil, como em outros países, só começou a olhar para as questões raciais de forma séria quando intelectuais e psicólogos negros começaram a questionar suas raízes e apontar suas falhas” (Kuperman, 2011, p. 67).

Grada Kilomba, psicóloga e escritora de origem angolana, traz uma contribuição fundamental na construção da psicologia racializada, especialmente ao tratar da experiência do negro na sociedade. Em sua obra Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano (2008), Kilomba propõe que o negro é constantemente tratado como o “OUTRO”, um ser que é posicionado fora da normatividade da sociedade branca, como uma figura que é percebida de maneira inferior, subordinada e desumanizada. O conceito de “OUTRO” remete ao processo de marginalização e desumanização das populações negras, que são tratadas como diferentes, estranhas e inferiores, em comparação com a norma cultural e social dominante, que é branca (Kilomba, 2008).

Ao considerar esse conceito na área da psicologia, podemos interpretá-lo no contexto da saúde mental, onde a população negra é sistematicamente tratada como o “OUTRO” no campo da saúde psicológica. Os sujeitos negros enfrentam barreiras significativas para acessar cuidados adequados de saúde mental, e quando os buscam, muitas vezes são submetidos a um atendimento desumanizado, negligente e estigmatizado. O racismo estrutural permeia os serviços de saúde mental, resultando na exclusão das pessoas negras de um atendimento psicológico de qualidade. A psicologia, por muito tempo, foi uma disciplina que ignorou as especificidades da vivência negra, fazendo com que suas demandas por cuidados adequados fossem frequentemente marginalizadas ou até mesmo desconsideradas.

A exclusão dos negros do acesso a cuidados adequados de saúde mental pode ser compreendida através da lógica do “OUTRO”, no qual a experiência negra é desconsiderada nas práticas terapêuticas. De acordo com Kilomba (2008), o racismo estrutural perpetuado em diferentes esferas da sociedade, incluindo a saúde, contribui para o processo de desumanização dos sujeitos negros. Esse fenômeno se manifesta na forma de uma “patologização” racializada, onde comportamentos e sintomas psicológicos de negros são interpretados através de lentes estigmatizadas, frequentemente associadas à criminalidade, agressividade ou “anormalidade”. Isso cria um cenário onde a população negra não tem seus direitos de saúde mental plenamente reconhecidos, nem o direito de receber os cuidados adequados que sua saúde psicológica demanda.

Na prática, isso significa que as pessoas negras tornam-se o “OUTRO” também na saúde mental, sendo invisibilizadas ou maltratadas por um sistema que não reconhece nem valida suas experiências. Quando a psicologia se distancia de uma abordagem racialmente consciente e culturalmente sensível, ela reforça essa exclusão, tornando-se mais um campo de marginalização, em vez de um espaço de cuidado e acolhimento. O racismo institucional, dentro dos serviços de saúde mental, desumaniza a população negra, impedindo que ela receba um atendimento verdadeiramente inclusivo e que leve em consideração a totalidade de suas vivências e subjetividades.

Essa reflexão sobre o “OUTRO” de Kilomba traz à tona a necessidade urgente de uma psicologia antirracista, que reconheça as particularidades das experiências negras e busque, de fato, transformar a prática psicológica, para que a população negra não seja vista como marginalizada ou desprovida de dignidade em seus processos de cuidado. Como Kilomba afirma: “O racismo é uma condição de sofrimento psíquico e uma das maiores violências que afetam a população negra, e, portanto, é uma questão que deve ser diretamente abordada no campo da saúde mental” (Kilomba, 2008, p. 147).

Considerações Finais

A manicomialização da população negra é uma manifestação do racismo estrutural que ainda permeia as instituições brasileiras. Reconhecer esse legado é o primeiro passo para promover mudanças significativas no campo da saúde mental. A promoção de uma abordagem antirracista e

inclusiva é fundamental para garantir que a população negra tenha acesso a cuidados que respeitem sua dignidade e história.

O artigo conclui que a manicomialização da população negra não pode ser vista como um fenômeno isolado, mas sim como parte de um sistema mais amplo de racismo estrutural que permeia as instituições brasileiras. Para combater esse legado, é essencial reconhecer o papel histórico das práticas psiquiátricas na exclusão social e promover uma reestruturação das políticas de saúde mental que priorize a equidade e a inclusão.

A formação de profissionais de saúde mental deve incluir conteúdos obrigatórios sobre racismo estrutural e suas implicações na saúde. Além disso, é necessário ampliar o financiamento de programas comunitários que promovam o cuidado em saúde mental a partir de uma perspectiva interseccional.

Reconhecer a relação entre racismo e saúde mental é um passo fundamental para garantir que a população negra tenha acesso a cuidados que respeitem sua dignidade, história e cultura. Somente por meio de uma abordagem verdadeiramente inclusiva e antirracista será possível construir um sistema de saúde mental mais justo e eficaz.

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Coluna da Tamiris

Olá, meu nome é Tamiris Eduarda, sou estudante de Psicologia, educadora social e terapeuta ABA infantil. Dedico-me a pesquisar e escrever sobre a saúde mental da população negra, periférica, indígena e LGBTQIAPN+, com o objetivo de ampliar debates sobre diversidade, inclusão e a luta por equidade no campo psicológico.

Minha trajetória é marcada por um interesse profundo em compreender como fatores sociais, históricos e culturais influenciam o bem-estar psíquico das comunidades marginalizadas. Esse interesse nasceu da percepção de que, muitas vezes, a psicologia tradicional negligencia essas experiências e que é urgente promover práticas mais inclusivas e interseccionais.

Meus principais temas de estudo incluem psicologia racializada, educação inclusiva e a importância de compreender a subjetividade de crianças e adolescentes. Acredito que entender as experiências individuais e coletivas, respeitando o contexto social de cada pessoa, é essencial para uma prática psicológica efetiva e transformadora.

Minha visão profissional é guiada pelo compromisso com uma abordagem humanizada e interseccional, que valorize as especificidades de cada indivíduo e enfrente as desigualdades estruturais. Busco construir um espaço de acolhimento e escuta, onde as histórias e as vivências sejam respeitadas, e onde cada pessoa possa encontrar apoio para alcançar seu potencial pleno.

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